Escrevinhadura

2010

Não-lenda desencantada

 

 

RED- SACADA -

 

 

Conta uma não-lenda desencantada que havia um tempo em que todos eram diferenciados por seu poder de comprar coisas úteis e inúteis.

 

Nesse tempo, também, havia muitos governantes poderosos que mantinham mulheres, homens e crianças sob seu total domínio. Essas pessoas lhes deviam favores, obediência, e obrigações religiosas.

 

Proibição de fala e pensamento eram decretados com naturalidade, e os revoltosos eram presos em masmorras, punidos com torturas, degredo e exílio.

 

Outros povos, já haviam conquistado direitos básicos, porém ocupavam-se de si mesmos, não dando a menor importância às necessidades dos outros.

 

Um dia, uma bela princesa teve a idéia de garantir que todas as pessoas, independente de raça, cor, religião ou atividade política, tivessem direito de morar e comer bem, de ter emprego, família e amigos, direito à arte deles e dos outros povos, além de poder, pensar, dizer e fazer o que desejassem, contanto que não ferissem os iguais direitos dos outros.

 

Para melhorar a qualidade de vida das pessoas, essa bela amazona, começou a construir moradias com uma sacada para a rua, como garantia de que, todos os dias, as pessoas pudessem, do alto, não somente ver o sol nascer ou se por, mas também ver quem chega e sai, quem passa ou fica.

 

Dali de cima, também, mesmo as pessoas que não pudessem saír de suas casas, por algum motivo de saúde física, ouviam as falas dos outros e davam suas opiniões.

 

E assim, pessoa a pessoa, a população inteira teve direito a suas sacadas, seus pensamentos, suas falas e liberdades incondicionais.

 

O planeta, que observava quieto, sorriu, porque esse mesmo povo também cuidou dele, como a casa de todas e todos.

Scott Johnsonn vai ao Recife

 

 

RED - EU E MINHA SOMBRINHA

 

 

 

Parecia loucura encontrá-lo, mas após vários meses de mensagens em sites de relacionamento da rede mundial de computadores, chega-me a mensagem: sou eu, estou vivo.

 

Como saber se ele era ele mesmo?

 

Fiz uma pergunta “secreta”: o que disseste ao dono do Tejo Bar, em Lisboa, no primeiro momento em que o viste?
Ao que ele respondeu: Are you able to ask me in English? (Podes fazer a pergunta em inglês?)

 

Depois, ele me respondeu à pergunta, com todas as letas, não tive dúvidas de que ele era ele, e o convidei a vir ao Recife.

Chegada ao Recife e hospedagem acertados.

 

Fui esperá-lo no aeroporto Internacional Gilberto Freyre.

 

Já na chegada teve uma surpresa:
– Amazing! Quanta mulher bonita! Elas perderam as roupas?

 

Não sei exatamente o que ele queria perguntar, mas foi isso que falou.

Que nada! – explicava eu, em inglês.

 

Levei-o para o hotel. Recomendei os itens indispensáveis ao café da manhã do dia seguinte: frutas, queijos, massas, e muito, muito líquido. Entreguei-lhe um cantil que seria por ele carregado durante todo o dia seguinte.
– Try to sleep well, Scott, porque amanhã a barra vai ser pesada
– Ok, ok, thanks.

 

Não expliquei nada sobre o que ele veria no outro dia. Achei que o elemento surpresa seria uma experiência fantástica.

Logo às nove da manhã do sábado, lá fomos nós, em direção ao local de saída do bloco.

 

O calor de rachar beirava os 35º C, e não havia uma única nuvem no céu apaziguando o sol.

 

Scott, já estava assustado, pois sempre viveu em cidade pequena, e  tinha experimentado o maior aglomerado humano num certo 4 de Julho, em que todas as cinco mil almas residentes em sua cidade festejavam em frente à igreja.

 

Estava quase sem roupa… Seu suor escorria mais que bica em dia de tempestade.
– Pôrra meu! What is this?

 

Suas palavras em bom português eram fruto de aulas com um brasileiro, entre o dia do convite e sua viagem.
– Estoouu impressionnaaddo!

 

Exótico, físico esbelto, olhos atraentes, cabelo longo e espichado o  destoavam da fantástica mistura racial pernambucana.

 

Lindas garotas, quase nuas, ofereciam-lhe beijinhos e abraços. Coisa nunca vista por ele!

 

Tímido, ficava vermelho como camarão assado.
– Elas querem make love with me?
– Não Scott, é só carnaval!

 

Essa palavra que ele entendia sem entender. Não tinha a menor noção do funcionamento de toda aquela loucura:
vinte e cinco trios- elétricos, tocando frevos variados, passariam por nós, cada um com música mais frenética que outra…

 

Também passram por nós quatro orquestras de frevo, ali, no chão mesmo, tocando desesperadamente, com a multidão pulando como pipoca na panela, na frente, dos lados, atrás.

 

Os pernambucanos, ao ouvirem um frevo, não aguentam ficar sem levantar os braços e tirar os dois pés do chão, de preferência tudo ao mesmo tempo.

Ele, aficionado à música erudita, ficava confuso com aquela mecânica… e com o povo.

 

Tudo deslumbrante!

 

Ele mexia o bumbum para um lado e para outro, e quando aguentava o calor, levantava os braços e dizia “amazing!, isto é bom, I love it”.

 

E eu amava ele fazendo isso!

 

Chegou a passar mal, e foi acudido por cinco lindas loiras que lhe deram água gelada e beijinhos na boca.
Beijos que ele achou estranhos mas não falou nada. Afinal, falava mesmo muito pouco.

 

Nem imaginou que eram todos homens vestidos de lindas garotas, de saias curtas e bocas vermelhas de batom.

 

A certa altura deitou-se no chão e falou:
– I am dying!
– Não, Scott, disso você não morre!

 

Ele sobreviveu, e somente desmaiou horas depois, quando lhe falei que havia, no Galo da Madrugada, 1,5 milhão de foliões. Mas ressuscitou perguntando:
– Estou vivo? Dead? This é real?

 

Para dirimir suas dúvidas, eu e minha colorida sombrinha de frevo, resolvemos fazer aqui o registro desse dia único, imperdível, inominável.

 

Gostaria de ter misturado minhas gordurinhas aos ossos mal cobertos dele… Confundir ainda mais nossos enigmas… Porém era carnaval, a quarta-feira ingrata já já chegaria, e… não deu tempo, pois nos perdemos, e estou novamente à sua procura.

Suspiro

 

 

RED SUSPIRO

 

 

Aquela era uma noites de sono tão profundo, em que mal dormimos surge a aurora.

 

O dia está claro e de céu azul. Sem calor nem frio. A brisa suave bate em meu rosto. As árvores exalam um estranho perfume.

 

Caminho por entre o verde, e… Lá está ele!

 

Lindo! Como nada mais poderia ser,

Comparo-o a uma pintura de Van Gogh. Sua camisa combinando com seus olhos… Sua calça folgada, quase um balão… Imagino que o fará levantar vôo a qualquer instante.

 

Consigo balbuciar seu nome:

– Scott?!?!?

Ele abre-me um imenso sorriso:

– Very good to see you!

 

Meu corpo, em uníssono, estremece.

Corro para junto… O mais junto que dois corpos vestidos podem estar.

Abraçamo-nos  calorosamente. Seus longos braços, como feixes. Mil braços! Cobrem-me.

Seu casulo me protege.

 

Permanecemos calados. O silêncio nos basta. Esquecemos o mundo, o presente, passado, futuro…

 

Respiro fundo. Sorrio, choro…

Horas, dias, anos, bem paradinhos… Imóveis…

 

A música de nossos corações e pulmões, além do calor e nossos corpos, é tudo que cabe nesse encontro.

 

Abro os olhos.

 

Um bem-ti-vi canta na janela do meu quarto.