Escrevinhadura

2013

Lar

 

 

 

BICHINHOS - MAR 2013 (94) RED

 

 

Todos, ao redor da grande mesa, conversavam alto, falando da colheita e das festas de santo.

 

Vez por outra, surgiam na roda, histórias de escravos e senhores e cantos ecléticos, vindos de África, cantados pelo tataravô, que acabavam por trazer alguma melancolia e saudades de mundos perdidos.

 

O milho, servido a todos, fora acompanhado por café bem quentinho, torrado e moído na hora, quando os bolos da tataravó faziam todos lamber os beiços, os dedos, e pedir mais.

 

Meu tataravô sabia as histórias faladas por seus ancestrais, e as contava, recontava, e re-recontava tudo, após floreá-las com seu imaginário fértil, para que minha bisavó as guardasse bem no âmago de sua sabedoria. Ele falava:

– Licota, filha, presta a atenção pra não esquecer… guarda bem aí! Bem dentro!

 

Licota, brincando com sua boneca de pano, já surrada por tantas brincadeiras, nem levantava os olhos. Mas, de ouvido, guardava tudo no coração, exceto pela boneca, que após cada brincadeira voltava para o fundo do baú.

 

Ela sempre foi assim, meio calada, meio sisuda, mas quando eu, sua primeira bisneta, nasceu, ela me falou as histórias, e ainda tinha sua boneca, que acabei de acabar, após poucas brincadeiras desta menina consumista e agressiva  – sem o entendimento e o cuidado cuidadoso com os objetos raros.

 

Resultado deste mesmo processo de consumo foi o desapego à casa do tataravô, após alguns assédios financeiros, de pouco mais de trinta dinheiros, que minha mãe concordou em aceitar.

 

Não somente a casa do meu, mas a de tantos outros tataravôs – as casas, as ruas, toda a vila  – entregues à senhores da especulação turística e imobiliária, apagaram nossas histórias, e heranças.

 

Agora, expulsos das origens e vivendo em territórios desconhecidos, servimos ainda a senhores, frutos e filhos de outros também senhores, os poderosos do capital.

 

Na antiga casa, vivem estranhos, que dizimam, bem dizimadas, as nossas histórias.

 

 

Do amor impossível

 

 

Ele – Até breve.

Ela – até qualquer dia. Aqui ou do outro lado do mundo.

E se deram beijos e abraços.

Ela partiu, ele ficou ali, imóvel, mudo…

 

Entre histórias de nuvens, avisos de luas cheias e falas carinhosas, eles esperaram pelo “feliz dia do reencontro”, marcado sem data no calendário.

 

Certo dia, varada de  saudade inconsolável, ela lhe passa vários e.mails. Nenhuma resposta…

Temendo não mais o ver, ela escreve ao amigo comum: “Não consigo me comunicar… acha pra mim?”

A resposta veio direta, fria, dura, fazendo-a descobrir que o feliz dia do reencontro, nessa vida, nunca mais aconteceria.

 

Os diálogos haviam ficado longe no tempo. Longe não pela distância no próprio tempo, mas pela lonjura intransponível criada por esse tempo.

 

 

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A ela resta a felicidade de saber que agora ele pode estar sempre ao seu lado, e que nada mais os separa.

A ele não podemos saber o que resta.

 

Lendas de Pangeia – II

 

 

 

O sol brilhava ardente, e podia ser visto diariamente durante doze horas, um pouco mais brando no início das primeiras e nas últimas horas do dia, quando estava chegando ou partindo para o outro lado do mundo.

 

Os bichos diurnos corriam soltos nas florestas, montanhas e vales.

Os bichos noturnos, viviam onde somente a profunda escuridão reinada, e nunca haviam visto o dia, até quando um deles resolveu ser boêmio e trocou a noite pelo dia.

 

Quase não podia abrir os olhos, e foi muito lentamente conseguindo ver tudo.

 

Então, reuniu os bichos da noite em uma enorme assembleia que lotou a grande montanha e o vale.

 

E gritou, em uma língua geral, para que todos o compreendessem:

– Existe um sol enorme que brilha, e se pode ver tudo!

Necessitou explicar a palavra ‘sol’, até então desconhecida.

– E como assim? Como se pode ver tudo?

 

Uma grande balbúrdia se instalou.

 

Após alguns acertos, ficaram todos acordados, esperando o meio do dia.

 

Organizaram-se para soprar com todo o ouro de seus corações na tentativa de levar os raios do sol, do meio do dia, para o meio da noite…

 

Alguns cambaleavam de sono, mas todos permaneceram mais ou menos acordados, mediante toda aquela luminosidade.

Apertavam os olhos por causa do excesso de luz.

 

E…

 

– Agora! Agora! Agora!

 

Sopraram com tanta força que puseram-se a dormir, voltando a acordar somente no meio da noite, para pela primeira ver que o ouro de seus corações havia se transformado em um espelho.

 

Então, perceberam que se podia ver quase tudo, e que seus esforços para ficarem acordados  havia valido a pena.

 

 

LENDAS PANGEIA II- LUA  cópia

 

 

Desde então a lua, às vezes maior, as vezes média, às vezes cheinha, cheinha, espelhada de ouro, brilha no céu!

 

 

Uma ‘rapidinha’ com Pablo Picasso

 

 

 

 

Pablo Picasso, espanhol, nascido em Málaga, em 25 de outubro de 1881.

Considerado um “revolucionário, genial, vanguardista, visionário”, deu novos rumos à arte do século vinte.

 

A entrevista foi concedida na última residência do artista, em Notre-Dane-de-Vie, no sul da França.

 

 

 

PICASSO E EV  cópia

 

 

 

Eliane Velozo – Pablo, você foi criado entre mulheres. Moravam na sua casa, durante sua infância: seu pai, professor de arte, mas um tanto ausente das atividades familiares, sua mãe, duas irmãs, duas tias e a babá.

Isso foi determinante para você?

 

Pablo Picasso – Foi sim. Eu carreguei por toda a minha vida a imagem marcante de todas essas mulheres. E, também, de todas as outras que passaram por minha vida. Elas estão em minhas obras, dos desenhos às pinturas, e nas esculturas também.

 

EV – Você tem olho de vencedor.  Segundo sua mãe, sua primeira palavra foi “lápis”. Ela também falou que “você nasceu para a glória”. Esse seu olho observador, essa fascinação, surgida nos seus primeiros anos de vida, levou-o a refletir, analisar, alguma vez, sua trajetória artística?

 

PP – Não, para mim tudo era natural. Na infância eu desenhava tudo que via pela frente. Aos oito anos desenhei a cena de uma tourada. Aos 13, pintei a minha primeira paixão, uma senhorinha linda, que eu acreditava que fosse um anjo. Aos 14 anos, recém chegado a Barcelona, vindo de Málaga, passei nos exames para a Escola de Belas Artes de Barcelona. Daí em diante, nunca mais parei de exercer minha arte. Acredito que sempre relacionei minha vida e meu fazer artístico, às mulheres que me cercaram… na minha “fase azul”, mais depressiva, na “fase rosa”, onde uma nova mulher me deu novos alentos, e quando resolvi ver várias mulheres em uma só imagem, ou várias imagens de uma mesma mulher, ao mesmo tempo, ou as mulheres como o supra sumo do ser observador, com olhos direcionados para todos os lados, na minha obra cubista. Esse processo também teve relação direta com minhas observações das máscaras africanas, que são, para mim, de alguma forma,  experiências cubistas.

 

Na minha obra cubista, desejei, também, retirar toda a possibilidade de realismo que vinha sendo trazido pela fotografia e pelo cinema.

 

EV – Você viveu uma fase bastante conturbada da história mundial e européia, a primeira guerra mundial, a guerra civil espanhola, e a segunda guerra mundial. O que significaram essas sequencias de conflitos violentos na sua produção artística?

 

PP – Antes de me mudar para Barcelona, que era um centro de industrialização e de lutas sociais, eu vivia em um mundo aparentemente pacato. Ao observar tudo que me cercava na realidade de Barcelona, eu me transformei profundamente. Passei a acreditar em uma sociedade mais justa. Nessas mesma época o valor de minha obra foi reconhecido artística e financeiramente.

 

Após a II Guerra Mundial, eu entrei para o partido comunista, e lá permaneci por toda a minha vida.

 

EV – Muitos artistas, a partir da década de vinte, mudavam-se para Paris, buscando tornarem-se conhecidos. São declarações sobre Paris: March Chagal –  “Se eu não tivesse vindo para Paris, não seria quem sou”; Juan Miró – “Nós todos fomos para Paris, era nosso objetivo. Se nos saíssemos bem em Paris, todas as portas se abriam para nós”; Ernest Hemingway – “Paris valia sempre a pena”; Gertrud Sten – “Paris era onde o século XX estava. Era onde tínhamos que estar”.

 

Todos esses artistas, me parece, viviam uma crise de identidade. O que você tem a dizer sobre Paris?

 

PP – Paris foi fundamental. Nessa época existia um pessimismo geral. Tínhamos dificuldade de adequação social, questionávamos nossa existência e nosso mundo. Era difícil vender nossa arte…

 

Gertrud Stein foi nossa mecenas. Ela colecionava o trabalho de todos nós. De alguma forma ela nos relacionava uns aos outros, e nos fortalecia. Nossas obras eram compradas por cerca de cem, duzentos dólares. Mas ela era quem nos valorizava. Ela sabia o que estava fazendo. Vivíamos muito ao redor dela.

 

Aquele foi, sem sombra de dúvidas, um tempo muito rico para a arte.

 

EV – Você foi assíduo freqüentador das touradas. O que lhe atraia nelas?

 

PP – Talvez o contraponto entre amor e morte, entre sofrimento e glória. O toureiro, para mim, era  um herói, traduzido pela beleza e pela magia visual de seus movimentos na arena. Isso entrava em meu sangue, em minha alma. Parecia comigo… aquela figura imponente, ali, na frente do touro era como um rei. Eu também pensava, algumas vezes, na improvável vitória do touro. Talvez até desejei que o touro saísse, em algum momento, vencedor. Acho que isso foi acontecendo à medida que a consciência social crescia em mim.

 

Mas era, para mim, sobretudo, uma experiência estética, trágica e marcante, que acredito desembocava no meu trabalho.

 

EV – Guernica, de 1937, é um supra sumo de sua obra revolucionária. E você ainda nem imaginava os horrores da segunda grande guerra que estava por vir. Nessa época o mundo via a ascensão do nazi-fascismo.

 

A Guernica é praticamente uma colagem… uma terrível e realística colagem das consequencias da guerra. Hoje, é uma das obras de arte mais vistas do mundo.

O que é a Guernica para Pabrlo Picasso?

 

PP –  É todo meu desejo de expandir, ao máximo, o imaginário dos resultados trágicos do mundo que o ser humano estava construindo, e destruindo… é um pouco dessa contradição de desconstrução da realidade, da reconstrução de uma outra realidade fragmentada, partida em mil facetas, transfigurada pela ausência de perspectiva, na obra, como na sociedade, igualzinho à sociedade como eu a ví. É um grito pessimista sobre o porvir.

 

EV – Muito obrigada. Foi um imensurável prazer lhe conhecer.

 

 

(Texto de ficção. As informações nas perguntas são baseadas em fatos históricos. As respostas, mais subjetivas, são ficção, respostas possíveis, baseadas no que se conhece sobre o artista e nas opiniões da autora da entrevista).

 

Contradictus

 

 

 

 

esta (2)

 

 

Morde e assopra.

Acalenta e pune.

 

Cercado pelo paraíso, derruba árvores, polui rios, devora outros animais, inclusive os que estão em processo de extinção.

 

Cria códigos de linguagem para falar e escrever coisas incompreensíveis.

 

Constrói máquinas e as torna mortíferas.

 

Cria meios de transporte e atravessa mares e oceanos para destruir cidades e dizimar inocentes.

 

Cria aparelhos de comunicação para vigiar os povos; Gera ideias e mitos inatingíveis. Seduz e assassina.

 

Bicho estranho esse! Imagem e semelhança de deus ou do diabo?